Logosnet - Revista Eletrônica de Filosofia                                                                                                    Filósofos no Divã
 

Filosofia clínica oferece um novo campo de trabalho para uma área antes restrita ao magistério.  

Na Grécia Antiga, os primeiros filósofos eram especialistas em curar males da alma. Sócrates (470 a.C.), por exemplo, costumava sentar-se nas ruas e praças para conversar com as pessoas – muitas vezes em busca de aconselhamento para seus problemas pessoais. Ele já concentrava interesse na problemática do homem, provocando e estimulando o diálogo. Ouvia atentamente, depois levava o seu interlocutor, por meio de perguntas, a construir um significado para as suas questões e para sua vida; sua filosofia era uma filosofia para a vida. Tragédias também eram encenadas nos teatros ao ar livre gregos com o objetivo de exorcizar temores. Esse uso prático da filosofia como terapêutica foi resgatado há poucos anos pelo brasileiro Lúcio Packter, a partir de experiências adotadas nos EUA e na Europa. Packter sistematizou a filosofia clínica, especialização ensinada em algumas universidades e praticada em vários Estados.
A filosofia clínica utiliza conhecimento da filosofia acadêmica direcionado à terapia, centrado no sujeito como um todo e no meio onde está inserido. A prática está fundamentada nas idéias de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Kant, Wittgenstein, Foucault, Searle, entre outros. O objetivo é reconhecer os conflitos existenciais que a pessoa – ou partilhante – traz consigo e trabalhar para de amenizá-los. “Hoje, a filosofia clínica é o maior trabalho já realizado em filosofia acadêmica na América Latina, considerando-se que somente filósofos graduados em escolas reconhecidas pelo MEC fazem parte dela”, diz o filósofo gaúcho Lúcio Packter, sistematizador da especialização.
Neste tipo de terapia, não se trabalha com medicamentos, nem com o conceito de cura. Para a filosofia clínica não existe o “normal” x “patológico”, pelo fato de que a estrutura de pensamento de cada indivíduo é plástica, portanto, cada um é visto na sua singularidade. Isso significa que não existem rótulos, cada um tem a sua representação de mundo e vida.
Num primeiro momento, o partilhante começa relatando a sua historicidade de forma mais ou menos ordenada, objetivando uma organização e compreensão de sua vida. Essa vivência é contada por ele mesmo sem indução por parte do clínico. Num segundo momento, o filósofo clínico, tendo contextualizado o problema, perceberá como a pessoa se estruturou internamente. Poderá, então, observar dados importantes como ciclos repetitivos, padrões existentes ou problematizados que estão causando mal-estar existencial. Após este processo, o profissional buscará, junto à pessoa, as ferramentas necessárias para dar continuidade ao trabalho, visando conscientizá-la de seu funcionamento interno.
As consultas duram, em média, 50 minutos, uma vez por semana. Quanto ao período, depende de pessoa para pessoa: algumas, após oito meses de trabalho, se sentem bem, outras chegam a um ano ou mais. O término do trabalho se caracteriza pelo bem-estar subjetivo e é decidido conjuntamente.
Pós-graduado nas áreas de psicologia e psicanálise, Lúcio Packter chegou à filosofia clínica por não estar satisfeito com as respostas prontas e objetivas que as outras áreas propunham, reduzindo o comportamento humano a conceitos de certo ou errado. Viajou pelos EUA e pela Europa em busca de respostas. Encontrou uma proposta em que o filósofo atuava em aconselhamento – algo inteiramente distinto da filosofia clínica, mas que lhe ofereceu uma pista sobre o caminho que deveria trilhar. Retornou ao Brasil, criou a filosofia clínica e fundou o Instituto Packter.

Arena

A novidade logo encontrou desafetos entre psicólogos e psicoterapeutas, que criticam a falta de preparo dos filósofos, mas parecem também preocupados com um novo concorrente no mercado. Em recente matéria publicada na revista Veja, Pedro Gomes, diretor superintendente da Associação Brasileira de Psicanálise, disparou: “Isso não tem nenhum valor terapêutico.” Marcus Vinícius de Oliveira, presidente do Conselho Federal de Psicologia, foi mais longe: “Isso tudo é uma caricatura oportunista, um arremedo de assessoria pessoal, uma seita vulgar.” A psicóloga Adelina França avalia que filosofia e psicoterapia são áreas complementares, mas “a prática clínica necessita de um preparo que um curso de especialização não oferece”.
O coordenador do curso de filosofia da Universidade São Judas, Antonio José da Silva, é outro a ter ressalvas: “A análise de problemas pessoais é algo complicado e o filósofo não está habilitado para isso. Precisaria de um treinamento maior.”
“A filosofia clínica tem qualidades e problemas como as demais terapêuticas, acho importante que se ouça as vozes dissonantes”, diz, em tom conciliador, Lúcio Packter. “A filosofia clínica veio para se somar às terapias existentes. A interdisciplinaridade é importante, pois vários trabalhos fizeram uso, ao longo do tempo, de correntes de pensamentos filosóficos”, complementa Monica Aiub, presidente da Associação Paulista de Filosofia Clínica, que lembra das origens terapêuticas da filosofia: “O princípio do autoconhecimento apregoado por diversas psicoterapias tem sua origem na inscrição do oráculo de Delfos, tão cara aos filósofos desde a Grécia Antiga: conhece-te a ti mesmo. Se no decorrer da história da humanidade o papel do filósofo confundiu-se com o de um especulador de temas estreitamente teóricos, isso ocorreu devido a uma interpretação equivocada, pois não há filosofia dissociada da vida e de suas questões práticas – que suscitam a reflexão e a elaboração de teorias – a fim de compreendê-las e, quando possível, apontar caminhos para solucioná-las.”
Apesar das críticas, a filosofia clínica ganha projeção nacional. “Em 1995, quando abrimos o Instituto Lúcio Packter, tínhamos apenas duas turmas com dez alunos cada. Depois de dois anos, já havia 300 estudantes. Hoje, são 1.300 em todo o país”, contabiliza Hélio Strassburger, filósofo clínico e diretor do Instituto. O campo de trabalho desses profissionais é amplo e não se restringe apenas ao magistério, área tradicional da filosofia que foi reduzida bastante desde que a disciplina foi considerada não-obrigatória e retirada do currículo das escolas públicas na época do regime militar. Formam-se, anualmente, cerca de 1.700 filósofos nos cursos de graduação no Brasil. O filósofo clínico pode trabalhar em consultório próprio, em clínicas, hospitais, escolas, empresas, instituições públicas da área de humanas, consultoria ética, pesquisas etc. “O atendimento clínico é apenas mais uma das aptidões do filósofo, como já existe em outras áreas, por exemplo, a filosofia da ciência ou a filosofia da história”, enumera Hélio.

Formação

O filósofo clínico deve, obrigatoriamente, ser formado em filosofia e possuir o curso de especialização em filosofia clínica, com duração de dois anos mais os estágios supervisionados (total de 540 horas/aula). O curso é oferecido por profissionais ligados ao Instituto Packter, em Porto Alegre, com aulas em todo o Brasil. Algumas faculdades já estão envolvidas com o projeto. As Faculdades Integradas Espírita (Fies), em Curitiba (PR), promovem o único curso oficial de pós-graduação lato sensu em filosofia clínica no país. É por intermédio dessa instituição que os alunos obtêm o diploma chancelado pelo MEC. O Centro Universitário Moura Lacerda (Ribeirão Preto, SP), oferece a modalidade de formação profissional em filosofia clínica, com aulas ministradas pelo próprio Lúcio Packter. O conteúdo programático dos cursos inclui estrutura de pensamento, submodos (procedimentos clínicos), planejamento clínico, neurofisiologia, psiquiatria e farmacologia, matemática simbólica e estágio supervisionado.
Outras faculdades já foram influenciadas pela sistematização de Packter e incluíram a filosofia clínica como matéria da grade curricular, como já acontece na Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal de Uberlândia e na Universidade Regional de Blumenal (Furb). O Instituto Lúcio Packter articula ainda um projeto de doutoramento em filosofia clínica a ser ministrado na capital paulista em convênio com duas universidades brasileiras e três estrangeiras, cujos nomes Hélio diz não poder divulgar por estar em fase de negociações.
Em Ribeirão Preto, o Centro Universitário Moura Lacerda firmou convênio com o Instituto Packter e oferece o curso de formação profissional de filosofia clínica, também com dois anos de duração. Os encontros acontecem duas vezes por mês. “A filosofia clínica abre novas fronteiras de trabalho além do magistério. Por isso ela fortalece a graduação”, insiste Claudio Romualdo, coordenador-geral de graduação e aluno do curso idealizado por Lúcio Packter.
A Fies é a primeira instituição de nível superior a oferecer pós-graduação lato sensu em filosofia clínica. Ivo José Triches, coordenador do Centro de Pós-Graduação e Extensão da Fies, afirma que o mercado de trabalho está crescendo e elogia a nova área: “De tudo o que estudei e aprendi, não encontrei nada mais importante, interessante e eficaz para entender o ser humano como a filosofia clínica.” Existem dois tipos de certificado, o B e o A. No primeiro caso, o estudante possuirá apenas conhecimentos teóricos de filosofia clínica. Os diplomados com conceito A fazem estágio e estarão aptos a clinicar. Apenas 50 profissionais enquadram-se na categoria dos que podem abrir consultório. “O curso é puxado, e, na parte teórica, por exemplo, o estudante precisa ler mais de 130 autores, incluindo todos os clássicos em filosofia”, destaca Triches.