REVISTA VEJA - Setembro de 2001

Um papo-cabeça

Formados em filosofia se estabelecem como terapeutas e provocam a ira dos analistas

Adriana Negreiros

 

Numa anedota que dá a medida do pragmatismo da vida atual, um menino desconcerta outro ao saber que o pai do coleguinha é filósofo. "E para que serve esse serviço dele?", pergunta o garoto. Cerca de 1.000 filósofos em todo o Brasil encontraram uma resposta prática para essa questão, mas tem gente achando que eles estão ultrapassando os limites de uma reserva de mercado. "A pessoa formada em filosofia serve para atuar como terapeuta", defende o filósofo gaúcho Lúcio Packter, inventor de uma nova modalidade de terapia e alvo de psicanalistas e psicólogos ressabiados com a invasão de seu quintal profissional. Packter criou há sete anos a chamada "filosofia clínica", cuja proposta é apoiar por meio de consultas pessoais quem esteja necessitando discutir seus dramas existenciais, problemas de relacionamento, auto-imagem ou outras questões típicas da psicoterapia. Nessas consultas, o profissional usa seus conhecimentos filosóficos para consolar, acalmar ou orientar o cliente. Em alguns casos, pode também fazer uma massagem nos pés ou acompanhar o paciente numa rodada de chope. Trata-se, portanto, de uma espécie de análise heterodoxa. "Isso não tem nenhum valor terapêutico", reage o diretor superintendente da Associação Brasileira de Psicanálise, Pedro Gomes. "O grave é que terapias malconduzidas podem provocar um surto psicótico."

 

 

A despeito das críticas, a filosofia clínica tem crescido. Já há terapeutas estabelecidos em dezenove cidades de doze Estados. Só em São Paulo, são mais de 200. Cada um deles atende, em média, dez partilhantes, como são chamados os clientes. As consultas custam em torno de 50 reais e, como no caso dos analistas tradicionais, duram cinqüenta minutos. Mas não há divã. Boa parte dos encontros não acontece em consultórios fechados, e sim em ambientes abertos e públicos, como praias ou praças. Na essência, tudo se resume a uma boa conversa. A clientela aparentemente fica satisfeita. Tereza Santos, terapeuta ocupacional de Fortaleza, freqüenta há um ano as sessões com a filósofa Rose Pedrosa. "Achei o máximo quando ela chorou junto comigo depois que contei um caso triste", relata a cliente.

Duas outras razões explicam a proliferação de filósofos clínicos. Uma é que não há um grande mercado de trabalho para os 1.700 estudantes que se formam em filosofia por ano no Brasil. A outra tem relação com a facilidade para ingressar no ramo. O filósofo diplomado só precisa freqüentar um curso de dois anos – com aulas apenas nos fins de semana –, pagando mensalidade entre 100 e 180 reais. O diploma de graduação precisa ser reconhecido pelo Ministério da Educação, mas o certificado de filósofo clínico não exige esse tipo de formalidade. Packter diz ter criado a modalidade inspirado em assessorias filosóficas que conheceu na Europa e que, além da faculdade, fez outros cursos para desenvolver seu método. Quais cursos, ele não conta.

No site que mantém na internet, ele apresenta a formação de novos terapeutas como uma espécie de franquia na qual "tudo que é arrecadado pelo professor em seu centro é unicamente dele". Exibe também parecer jurídico para defender seu negócio. Uma medida preventiva, diante do vigor dos ataques que recebe. "Isso tudo é uma caricatura oportunista, um arremedo de assessoria pessoal, uma seita vulgar", diz, por exemplo, o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira.