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Goiânia, 07 de outubro de 2001

 

O que é a filosofia clínica?

É o uso do conhecimento acadêmico, das teorias filosóficas desde os clássicos (Sócrates, Platão) até os contemporâneos (Jacques Derrida, George Berkeley) aplicados à terapia do indivíduo. A filosofia clínica prioriza a pessoa como um todo, em nível consciente. É realizado um trabalho em que a pessoa monta o quebra-cabeças de sua história, com a participação direta do terapeuta. Cada ser humano é respeitado na sua singularidade. Isto é cada pessoa tem uma identidade única, uma maneira própria de olhar e sentir a vida.

Origens

A filosofia clínica remonta 25 séculos, quando pensadores como Sócrates, Platão, iam para as ruas dialogar com as pessoas.

Em Portugal, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Escócia as pesquisas sobre filosofia clínica surgem na década de 80

No Brasil, aparece em 1980 quando o filósofo gaúcho Lúcio Packter retorna de uma temporada de estudos na Europa, em Edimburgo, e adota a filosofia clínica como um método terapêutico

Em 1995, Lúcio Packter cria o Instituto Packter, em Porto Alegre (RS) e o primeiro curso para a formação de filósofos clínicos no País.

Formação e ética Hoje, o Brasil tem 1,1 mil profissionais graduados.São 12 associações em funcionamento (Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Goiânia, entre outras) e mais quatro em formação (DF, PA, MA, ES)

Em Goiânia, a 1ª turma, com 16 filósofos clínicos, deve receber em breve o Certificado A, que permite a atuação como terapeuta, uma vez que trata-se de uma pós-graduação.

O certificado B compreende apenas a atuação enquanto pesquisador do assunto.

Só é permitido cursar filosofia clínica quem possui diploma de filosofia, concebido por uma universidade.

A filosofia clínica é autorizada pelo MEC via resolução CNE/CES, nº 1, de 3 de abril de 2001, publicada no Diário Oficial da União, que estabelece normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação

Os adeptos da filosofia clínica seguem um código de ética

Diferenças fundamentais

Psicanálise

Usa o processo dogmático das teorias de Freud, existe o inconsciente

Usa tipologias como neurose, narcisismo, paranóia

Recorre ao método de trabalho da livre associação, com o apoio do divã, tentando estabelecer relações, interpretando sonhos

Toda a teoria é baseada nas pesquisas de Freud

Filosofia Clínica

Usa o consciente. A pessoa reconstrói sua história de vida agora

Cada pessoa é vista como única, sem rótulos, no próprio ambiente

Recorre ao método da historicidade. O início da terapia parte do nascimento da pessoa, sem saltos temporais, busca ordenar as páginas embaralhadas da história pessoalO fato que era isolado ganha contexto histórico subseqüente

São utilizados os escritos acadêmicos de 2,5 mil anos da filosofia

Fonte: Lúcio Packter, coordenador de pós-graduação em filosofia

clínica da Universidade Moura Lacerda, em Ribeirão Preto e presidente do

Instituto Packter, em Porto Alegre

Saiba mais

l Filosofia Clínica: procedêutica, Lúcio Packter, Editora AGE, 1997

l Primeiros passos em filosofia clínica, organizadora Margarida Nichele, volume I, Editora Imprensa Livre, 1999

l Compêndio de filosofia clínica, organizadora Margarida Nichele, Editora Imprensa Livre, 1999

l A filosofia clínica e as psicoterapias fenomenológicas, organizadores Adalberto e Ana Tripicchio, Editado pela Associação Paulista de Filosofia Clínica, 2000

l Semiótica e Filosofia da Linguagem, Humberto Eco, Editora Ática, 1991

l Gramatologia, Jacques Derrida, Editora Perspectiva, 1973

l Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano. Três Diálogos entre Hilas e Filonous em Oposição aos Céticos e Ateus, George Berkeley, Editora Abril Cultural, 1984

l Maiores informações: site www.filosofiaclinica.com.br

Desatando nós

Já fiz quatro sessões de filosofia clínica. Conheci a terapia num workshop. A partir daí decidi trabalhar alguns nós que existem na minha vida. Em diferentes momentos já tentei outros tipos de terapia: regressão, com psiquiatria convencional, com florais, com homeopatia, psicanálise. Comecei a recorrer à terapia aos 24 anos, recebia alta, buscava outra experiência. Uma das diferenças fundamentais que estou percebendo é que a filosofia clínica permite passar a vida a limpo. É fantástico.

No início, somatizei no físico: tive diarréia e aflorou herpes. Mexe demais. Você vai vendo suas falas. Estou tendo um olhar mais humano e uma compreensão maior de como as pessoas funcionam. Um dos nós que quero desatar é manter uma relação estável a dois. Profissionalmente tenho sucesso. Meus relacionamentos com amigos, família também são ótimos.

Tenho de vencer a minha falta de persistência num relacionamento entre homem e mulher.

M.O, 43 anos, divorciada, sem filhos, de Porto Alegre (RS)

Uma intuição filosófica ou um mero modismo?

Filósofos atendendo em consultórios? Psicoterapia filosófica? Não estariam os filósofos indo longe demais, entrando num terreno alheio? Como seria uma consulta com um filósofo? Pesquisa científica, criação de conceitos, docência, assessorias políticas, consultorias e conferências não seriam os autênticos e possíveis trabalhos de um filósofo? O pensar filosófico vive de perguntas. As perguntas podem ser as chaves para a descoberta do novo.

Não confunda filosofia clínica com aconselhamento filosófico. Para muitos uma consulta filosófica será o encontro de um "paciente" com seu terapeuta num consultório cheio de livros e enciclopédias filosóficas, para lá "baterem um papo cabeça". No desenrolar do diálogo, na busca de encontrar algum norte para o "paciente", o terapeuta tomaria a República de Platão, a Ética de Epicuro, as Confissões de Santo Agostinho, a Náusea, de Sartre ou quem sabe as obras: Para Além do Bem e do Mal e Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, ou ainda se quisessem aprofundar o papo e dar um tom mais germânico para a conversa, tomariam o livro Ser e Tempo, de Heidegger.

Isso não é filosofia clínica. O filósofo clínico vai buscar estabelecer uma relação intersubjetiva empática (o que chamamos interseção positiva) com seu partilhante. A filosofia clínica não utiliza a idéia de "paciente", não pressupõe patologias ou tipologias e nem promete curas. Por isso, chamamos o cliente de partilhante, é aquele que partilha sua vida com base numa relação de amizade.

Para fazer psicoterapia o filósofo não traz o partilhante para seu mundo subjetivo carregado de verdades a priori. Ele é quem sem fórmulas mágicas e sem varinha de condão, vai ao mundo subjetivo do partilhante. Esse trabalho é criterioso e metódico. Até a última consulta, o terapeuta procura não emitir juízos ou fazer análises com base em suas verdades subjetivas ou enciclopédicas.

A filosofia clínica não se vê como a terapia entre todas as outras terapias. Mas ela também não é a dona da verdade. Se situa numa forma de pensar a filosofia como diferença. Se a filosofia clínica é uma proposta séria e viável quem vai julgá-la não serão os deuses celestiais, nem os doutos da academia, mas sim a história. Filosofia clínica é uma grande intuição filosófica do século 21 ou será mais um modismo, como tantos outros?

Railton Nascimento Souza, professor de filosofia e filósofo clínico em formação