Interseção

 

Órgão Oficial da Associação Paulista de Filosofia Clínica São Paulo,

 

São Paulo, setembro/dezembro de 2003

 

Entrevista com Lúcio Packter

          

Interseção – O que o levou a criar a Filosofia Clínica?

 

Lúcio Packter – Na década de 80 eu não estava contente com o trabalho que desenvolvia, estava em um processo de questionamento da minha formação, do que tinha estudado, do meu trabalho. Não tinha exatamente uma perspectiva naquela ocasião. Surgiu então uma oportunidade muito boa de ir para a Alemanha fazer um curso em Stuttgart, perto da Floresta Negra, um curso sobre neurologia. Era uma perspectiva nova que estava se abrindo, mas que se revelou mais uma experiência infrutífera. Eu estava me desligando da psicanálise, principalmente da psicanálise ligada à psiquiatria, e achava que a neurologia poderia me dar um fôlego a mais nessa ocasião, mas logo vi que não tinha jeito mesmo. Então me dirigi para a Escócia, Edinburgh, onde vivi e trabalhei por um tempo. Assim fiz. E, quando estava retornado ao Brasil, me falaram de uma proposta que havia na Holanda, em Roterdã, de filósofos trabalhando com entrevistas, com aconselhamento. Achei a idéia espetacular. Só que, ao chegar lá, o que vi não foi uma filosofia de aconselhamento, mas agendamentos, coisas que não correspondiam a toda aquela expectativa que foi criada na minha cabeça, de uma filosofia propriamente. O primeiro nome que me ocorreu para esse trabalho foi o de Filosofia Clínica, embora esse nome, depois, durante muito tempo tivesse sido abandonado. Os agendamentos me deixaram decepcionado. Mas a idéia de uma filosofia que pudesse trabalhar a clínica nunca me abandonou e foi o ar de que necessitava para retomar o consultório, para retomar ao que gostava de fazer. Voltei ao Brasil e comecei do zero a sistematização que, mais tarde, viria a ser a Filosofia Clínica. Então, o que me leveou a construir a Filosofia Clínica foi um afastamento da psicanálise, da medicina, e, principalmente, da psiquiatria. Essa talvez seja uma das respostas.

 

Interseção – Na construção da Filosofia Clínica, você fundamenta a prática clínica com a utilização de diversos filósofos. Qual o critério utilizado para as escolhas?

 

Lúcio Packter – Como mostrarei na obra ‘Fundamentação Teórica e Prática da Filosofia Clínica’, ainda que se diga que os grandes sistemas filosóficos tenham terminado, cada vez que um filósofo se propõe a fazer uma filosofia – por exemplo, Habermas com todo o discurso ético, ou Chomsky, com a Analítica e o estudo das estruturas profundas da linguagem, eles retomam o mesmo projeto e acabam criando sistemas de novo. Aquele idéia de que o último grande sistema filosófico tenha sido o hegeliano é difícil de sustentar; a questão é que , para fugir disso, evitar a busca de explicar toda a realidade, a saída, quase que inevitável, é o ecletismo. A Filosofia Clínica é extremamente eclética, é uma grande colcha de retalhos na qual as escolas estão em conversação; não há primazia de uma escola em detrimento das outras, você não vai tomar o nominalismo e deixar o empirismo em terceiro plano, não vai pegar o logicismo e deixar a epistemologia em quinto plano, isso não existe. Você colocará essas escolas em conversação e o critério que será utilizado para apreciar qual irá se destacar e qual deixará a desejar é simplesmente o que nos encontramos na historicidade da pessoa. Agora, o nosso referencial teórico, o arcabouço teórico de lastro, de contrapartida desse sistema dialético é todo ele filosófico. Então, quando em um dos tópicos você estuda a concepção da pessoa sobre o mundo, você elenca autores para fazer uma relação dialética, você vai pegar um referencial na área; esse foi o critério de escolha. Eu selecionava filósofos a partir dos quais as escolas se originavam. Se fosse ter uma concepção  de mundo empírica, com base na política e no direito, pegaria Hobbes, que é o autor a partir do qual todo um leque se abre. Sendo um pressuposto socialista, não tomaria Lukács, Gentile, o pessoal que veio depois; pegaria direto da fonte, Marx, a partir do qual toda a teorização se abre. Não é o melhor caminho, acredito que não seja, mas é um caminho viável a quem está pesquisando porque, do contrário, seria inviável fazer uma pesquisa; o número de autores e postulados é tão gigantesco que inviabiliza qualquer pesquisa. Então, pegando esses pontos nevrálgicos e fazendo contraposições, essa conversação, você tem uma inserção de discursos.

 

Interseção – Quais são as suas pesquisas neste momento?

 

Lúcio Packter – Nós temos problemas técnicos na Filosofia Clínica sobre os quais estou trabalhando. Por exemplo, temos problemas na historicidade; não comprometem a clínica, não agora, mas em dez ou quinze anos talvez comprometam. Nós temos a Matemática Simbólica, que está ainda em desenvolvimento. Temos pesquisas em Epistemologia e Linguagem. Particularmente, é curioso falar disso. Observo o pessoal que está clinicando, que está na ponta hoje, e compreendo que estas questões que estão sendo ventiladas e trabalhadas, essas pessoas vão pressupor e pensar daqui há quatro ou cinco anos, quando estiverem com calos clínicos nas mãos, porque existe uma lacuna muito grande ao se falar de clínica para teóricos, para pessoas que nunca viveram um consultório, é muito complicado. Entendem um discurso prático por outro caminho completamente diferente; é algo problemático. Então, as minhas pesquisas atuais são sobre Matemática Simbólica, Historicidade, certas concepções de submodos e não muito mais que isso.

 

Interseção – Como você vê a sua caminhada na construção da Filosofia Clínica?

 

Lúcio Packter – Uma caminhada belíssima, extremamente difícil, uma caminhada solitária, de renúncias a cada momento, em todos eles, eu diria, mas não vejo outro caminho. Eu faria cada passo novamente. Tenho para mim que a maior parte dos filósofos clínicos não tem idéia da construção teórica e prática que é a Filosofia Clínica. Tenho uma convicção muito grande hoje dentro de mim sobre isso. Infelizmente a minha geração não compreendeu a intenção da mensagem; não poderia compreender porque a ruptura é muito forte com o que havia antes, com o que ainda existe, com o caminho que se abre a partir daí. Há novas gerações de filósofos que vão compreender toda essa amplidão do discurso, e, mais, eles vão conseguir viver este discurso. A atual geração de filósofos clínicos, os melhores que temos atualmente, eles conhecem a Filosofia Clínica e sabem como ela está estruturada; sofrem os problemas, percebem os caminhos e diretrizes, mas não vive ainda, a maior parte deles não vive a prática da Filosofia Clínica no dia a dia, e é natural que seja assim. Isso é um primeiro passo para que novas gerações possam, é importante este momento, que vivamos isso. Eu não tenho dúvidas sobre o futuro, principalmente o futuro próximo, o que vai acontecer com o crescimento do trabalho, com a inevitável confutação do trabalho, cedo ou tarde isso vai acontecer, e o resultado será surpreendente, como está sendo. Médicos e colegas de outras áreas que estão vindo conhecer o trabalho estão surpresos com o que fizemos e acho que o futuro próximo reserva algumas surpresas muito generosas, dependendo do trabalho clínico que fizermos.